
Depois de longos anos navegando, é a primeira vez que o sal queimou meu rosto. Neste minuto, resta apenas um dos remos que tínhamos quando partimos de madrugada — o mar estava calmo, o céu, embriagante. Alguém deve ter apagado o farol — ele pulsava na costa até agorinha, pouco antes de a proa começar a perseguir a popa. Estou girando sob os monstros que mentem sobre nós. A velocidade baixa do vento frio tem cheiro de mercúrio — acalenta meu desejo incontrolável de avançar as unhas pelos cabelos e "cafunemear-me" até que não sinta mais o próprio casco cabeludo. E este silêncio doloroso... Onde foram parar as fagulhas brilhantes que parafraseavam meus versos e zuniam sentido a cada segundo nesta vastidão? Talvez aqueles pontos no céu tenham caído logo ali, bem ali, depois daquele horizonte. Confesso que já estava acostumado com os rasantes que serpenteavam luz sobre meus olhos.
Meus juízes não passam de ondas fragmentadas há milhões — intocadas, não me deixam ir e não querem que eu fique. Sinto muito por não querer abraçá-las. Vocês, por pouco, quase me salvam — mas não cederei ao carinho que me fazem, arranhando o casco do meu velho amigo barco. Não herdei o dom de deitar sobre seus lençóis — eles me pinicam a alma.
Sobre a melodia de alguns insetos traidores, alimento minha voz até que estejam surdos ou mortos de tanto me ouvir o silêncio — ou até que meu sangue esteja ralo demais para alimentá-los.
Ainda que eu descanse antes do sol, estarei diante das estrelas. Que os ventos desta noite possam me ninar. Não haverá deserto. Não serei um pálido e desfigurado corpo — me abraça a esperança.
Um rei ainda vive em mim e testemunhará minha chegada em um novo cais.
Há um banquete sobre a areia — deliciosas guloseimas empilhadas cuidadosamente, uma após a outra. São todas para mim, desde que meu coração compartilhe com os braços que me aguardam — com ou sem aplausos.
Deixarei à deriva apenas as lágrimas e o cansaço — que o coral abaixo de nós possa guardar as notas singelas e tristonhas ecoadas de minha alma.
As mesmas correntes que me prenderam sobre este banco de rochas me levarão ao campo de plumas. Para os peixes que dormem vorazes, deixarei os insetos. E para os monstros — ah, esses serão devorados de ponta a ponta por mágoas e mentiras, as mesmas que me aterrorizaram.
Perversos: fiquem para sempre em suas jaulas. Seguirei eu — e a verdade, límpida como o ar gelado desta brisa a mais de vinte nós.
J. Spagnol